Espaço de discussão e reflexão sobre a experiência do olhar e suas reverberações no corpo na construção/remontagem do espetáculo de dança contemporânea "feche os olhos para olhar" da desCompanhia de dança.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

A DANÇA COMO POÉTICA DO CORPO E DA VIDA

FONTE: Blog “Na Zaga e nas Artes”

des, deixo postado abaixo o texto que a Cintia Napoli pesquisou. Abraços. Yiuki

A DANÇA COMO POÉTICA DO CORPO E DA VIDA

Petrucia Nóbrega - Universidade Federal do Rio Grande do Norte

A dança como poética do corpo e da vida. Esse título remete a uma compreensão de dança que não se apega aos estilos ou gêneros da dança. Dessa maneira, a dança dá vida ao corpo e o corpo dá vida à dança, numa indivisão de sentidos.

A poética refere-se aqui à estesia, aos estados do corpo, suas sensações, afetos. Encontro essa poética nas obras de Maurice Bejart, Isadora, Laban, Maria Fux, Pina Bausch, Salia ni Seydou, Mathilde Monnier e tantos outros criadores da dança.

Le Sacré du Printemps de Nijinsky

Essa poética também está em Nietzsche, Schoppenhauer, Merleau-Ponty, Rimbaud, Paul Claudel, Fernando Pessoa, Manoel de Barros, filósofos e poetas que me ensinam a amar a vida com seus pensamentos vibrantes e corajosos. Assim como Nietzsche, considero perdido o dia em que, pelo menos uma vez, não se tenha dançado, colocando o corpo e a dança como metáfora de sua filosofia e de sua estética. Essa poética também atravessa as danças de Edson Claro, Edeilson Matias, Dimas Carlos , Roosevelt Pimenta, com seu emblemático Uirapuru.

Partilho com os leitores um trecho das “Cartas a um jovem dançarino, de Maurice Béjart. Uma declaração de amor a dança escrita em forma de carta a um dançarino imaginário e que faz todo sentido para os que amam e pensam a dança. Viva a dança, escreve Béjart:

Viva a dança. “Eu não sei o que é um arabesque. Jamais vi um arabesque, sim eu o repeti inúmeras vezes; mas eu vi Mademoisele X ou monsieur Y executar essa forma que os dançarinos chamam arabesque.

O que Béjart quer dizer quando escreve que jamais viu um arabesque, embora o tenha repetido muitas vezes? Ele não viu a forma, a mecânica do gesto. Ele viu Mademoiselle X ou monsieur Y executar arabesques. Béjart se interessa pelo humano dos nossos gestos. É o ser humano que dança, a dança não existe fora de um corpo humano, com uma história, com uma emoção, com uma cultura.

Vamos então olhar para os nossos dançarinos, ver além das formas acadêmicas da dança, das técnicas clássicas, modernas, jazzísticas. Vamos buscar enxergar o humano de nossos gestos, pois é aí que a dança habita, se reinventa e nos reinventa.

Todas as danças encontram o princípio da expressão no corpo. O movimento nasce da tensão, aliás a etmologia da palavra dança remete à ideia de tensão. A tensão tem uma ligação profunda com essa forma de expressão que é a dança. O movimento nasce da oscilação entre a tensão e o relaxamento, é um princípio fisiológico do movimento.

Le Sacré du Printemps. Coreografia de Pina Bausch

A dança é a arte primeira por excelência, efêmera, passageira, impalpável, a mais física, a mais intima e pessoal das artes pois exige o envolvimento de todo o corpo – nosso corpo. Corpo que eu chamo de meu, corpo que vejo no outro, corpo que está atado a um mundo com o qual me comunico.

A dança é energia, flama, sopro, sedução e possessão, êxtase e encantamento.  A dança tem mil faces conforme o lugar onde ela se exprime, o lugar de onde a olhamos, que ela seja folclórica ou tradicional, clássica ou contemporânea, ela é mestiça, toma várias formas, responde a múltiplas funções.

Faço um parêntesis para dizer que na dança contemporânea há que se observar não apenas o aspecto cronológico, como sendo aquilo que é produzido hoje, mas o valor poético, estético e que no caso da dita dança contemporânea, é híbrida, como afirma François Frimat, professor de Filosofia e Diretor do Festival de dança de Lille (latitudes contemporâneas).

No Ocidente a dança é, antes de tudo, divertimento e linguagem estética. Mas, em outras partes do mundo ela está no coração do ritual e da expressão de uma comunicação direta com o sagrado, ela é celebração, comunhão com a natureza.

Mesmo quando a dança é vista como linguagem estética, podemos expressar o encantamento e um estado de comunhão com a natureza, e mais, ainda consigo mesmo, a dança como celebração da vida, como apreciamos em Isadora, Mary Wigman, Béjart, Nijinsky e mais recentemente nas obras de Pina Bausch.

Gostaria de explorar esse aspecto da poética do corpo e da vida na dança que é também celebração por meio de seus gestos. Para tanto, começo lembrando François Delsarte, pensador do século XIX, para quem o gesto é o agente direto do coração. Essa compreensão irá influenciar os criadores de dança no século XX.

Minha arte é precisamente um esforço para exprimir em gestos e em movimentos a verdade do meu ser. Foram necessários longos anos para encontrar o movimento. Desde o começo não fiz outra coisa senão dançar minha vida, afirma Isadora em sua autobiografia.

A invenção de uma nova subjetividade pode também ser compreendida através da dança em todos os tempos, em especial no século XX e em nossa época. O corpo é um espaço íntimo, mas também social. A dança permite expressar, a um só tempo,  essa intimidade e essa extensão social, o quiasma, o entrelaçamento do corpo e do mundo. Por isso as técnicas mudam, a cena se transforma, os gestos não são mais os mesmos e de algum modo refletem ou se comunicam com as configurações sociais e políticas de um dado momento histórico. Cito como exemplo o Uirapuru, encenado por muitas companhias brasileiras, com um significado estético de se buscar um balé brasileiro e um sentido político  em pleno período da ditadura militar nos anos de 1970.

A exposição Danser sa vie, em cartaz no Centro Georges Pompidou, em Paris, nesse ano de 2012, trouxe ao grande público a relação entre a dança e a arte moderna, mas, sobretudo, a vida como centro das preocupações dos artistas.

A dança como expressão de si foi a tônica em todo século XX: Isadora, Nijinski, apresentam novas fontes de inspiração, desnudam-se,celebram o êxtase do corpo. Nesse mesmo início de século Jacques-Dalcroze cria sua escola para educar os corpos em função dos ritmos musicais em meio a paisagens naturais.

A eurritmia de Dalcroze, assim como as teorias do movimento de Laban, influenciaram os pioneiros da dança moderna e da dança contemporânea, como Mary Wigman, Nijinsky, Béjart e Pina Bausch por exemplo.

Contemporaneamente Pina Bausch encena lições de Laban e de outros pedagogos e dramaturgos, mostrando intensamente como a dança e a vida se comunicam. Dancemos, dancemos dizia Pina Bausch senão estaremos perdidos. Para Pina Bausch, suas danças tratam da vida, busca encontrar uma linguagem para a vida. Trata-se do que ainda não é arte, mas que talvez possa se tornar arte.

Esses extratos buscam compreender a dança como poética do corpo e da vida. O corpo não é jamais dado, nem na dança, nem no esporte, pois ele se reinventa no movimento. Encontrar essa poética, essa criação é o que dá sentido à dança, sua técnica, sua estética.

A dança é corpo em movimento. Como expressão da poética do corpo, podemos considerar o Balé a Sagração de Primavera. A Versão original, criada por Nijinsky para os Ballets Russes, com música de Igor Stravinsky teve sua estréia em maio de 1913, em Paris. As vaias impediam de ouvir a música afirma Gertrude Stein, uma das muitas personalidades que ali estavam. A coreografia é baseada em uma lenda russa e conta a história de uma jovem, a eleita, que precisa ser sacrificada em oferenda ao Deus da Primavera. Para elaborar a coreografia composta com movimentos de contorções e tremores, Nijinsky tomou como base a técnica da eurritmia de Dalcroze.

Uma das versões desse Ballet, refiro-me a versão contemporânea de  Pina Bausch apresenta a mesma força orgânica do corpo em meio a terra. A respiração, as contorções, os gestos dão vida ao corpo e expressam essa relação mítico-mágica com a natureza, com a duração, o fluxo do tempo, com as transformações que configuram a vida, à fertilidade, ao corpo e seus instintos. Nos movimentos sente-se a tensão do corpo e ao mesmo tempo, sua leveza. Em outros momentos, a embriaguez da dança se faz presente, é uma dança dionisíaca no sentido apresentado por Nietzsche, uma dança que celebra o corpo e sua ligação com a terra, envolvidos pela percussão que expressa esse orgânico de forma dionisíaca.

Le Sacré de Printemps é uma coreografia com muitas versões (Béjart, Graham, Pina Bausch, Paul Taylor), em diferentes gêneros, espaços, e tempos; mas que tem a marca, o valor estético e poético do híbrido, pela força do corpo. Desde a versão original, apesar das vaias do público, tornou-se um clássico da dança. A coreografia abandona a graciosidade das curvas, quebra o equilíbrio do corpo de baile em torno do eixo central da cena, introduz o princípio da assimetria. O único solo é o da virgem eleita. Aliás, essa cena é emblemática da força do corpo, o medo, o desejo, o poder que envolve o ritual da escolha e da possessão.

A força da interpretação dos dançarinos faz sentir a força da vida, da natureza em nós, das metamorfoses que fazem o sal da vida e da existência e que foram tema dos grandes artistas aqui citados como Isadora, Nijinsky, Béjart, Pina Bausch e que pode nos servir de inspiração para a dança.

Assim, dançar é escolher o corpo e o movimento como campo de relação com o mundo, como expressão, como encantamento, como poética da vida em sua efemeridade.

Para terminar cito Paul Valéry, em a alma e a dança:

“A dança é uma coisa completamente diferente. É sem dúvida um sistema de atos, mas sem fim em si mesmo. Não conduz a nada [EFEMERA]. E se persegue um objetivo qualquer, é sempre um objetivo ideal, um estado de inebriamento, um fantasma de flor, um momento extremo [EXTASE], um sorriso que se forma no rosto de quem o solicitava ao espaço vazio. Não se trata pois de efetuar uma operação finita, e cujo fim se situa em algum lugar [TECNICISMO, VIRTUOSISMO], mas sim de criar e de manter, exaltadamente, um certo estado [ POÉTICO], graças a um movimento periódico que pode ser executado no mesmo lugar; movimento que se desinteressa quase completamente do olhar, mas que se excita e se regula pelos ritmos auditivos’ [MUSICA E MOVIMENTO, CORPO E ALMA] como nos ensinam os filósofos, poetas e dançarinos de todos os tempos e lugares.

Nenhum comentário:

Postar um comentário