Espaço de discussão e reflexão sobre a experiência do olhar e suas reverberações no corpo na construção/remontagem do espetáculo de dança contemporânea "feche os olhos para olhar" da desCompanhia de dança.

sábado, 7 de novembro de 2009

O CORPO PERCEBIDO, por Denise da Costa Oliveira Sirqueira

desCompanhia, deixo o texto que encontrei no site do idança.
Coloco-o na integra, pois são tantos os termos e referências que creio que são importantes para a nossa pesquisa. Att. Yiuki
Refletir sobre a dança contemporânea em sua multiplicidade de formas é exercício complexo que exige a leitura de diferentes teorias, buscando em cada uma delas elementos complementares. Pensadores como Marcel Mauss, Michel Foucault, Maurice de Merleau-Ponty e Pierre Lévy observaram o corpo e construíram idéias importantes e ao mesmo tempo bastante distintas que podem ajudar a entender as mensagens “das entrelinhas” das danças.
O corpo é elemento fundamental na dança e toda sua história cultural, social, biológica se reflete nos movimentos que faz. Movimentos coreografados ou espontâneos deixam entrever aspectos da cultura na qual está inserido aquele que se move. A forma como um coreógrafo e seu intérprete percebem o mundo se apresenta em sua dança.
O filósofo Maurice de Merleau-Ponty dedicou parte de sua obra a reflexões sobre o corpo, o que permite construir pontes em relação à dança. O filósofo analisou o que chamou de consciência perceptiva, complementar à consciência representativa. Segundo Merleau-Ponty, a percepção é sempre consciência perceptiva de alguma coisa e nela não se pode separar o sujeito e o objeto – como fazem as ciências naturais e as ciências sociais de base positivista. Na percepção, as decomposições analíticas são precedidas pela imagem do todo. Assim, a percepção do espetáculo de dança, por exemplo, seria sempre a percepção de um todo, composto por movimento, coreografia, espaço, tempo, gestual, corpo, bailarino, platéia.
Em toda percepção, afirma Merleau-Ponty, tem-se o paradoxo da imanência (o imediatamente dado) e da transcendência (o além do imediatamente dado). Imanência e transcendência são os dois elementos principais, estruturais de qualquer ato perceptivo. Assim, o objeto percebido não é de todo estranho ao sujeito que o percebe (imanência). Por sua vez, toda percepção de alguma coisa significa uma não-percepção de algo que está para além do imediatamente dado (transcendência). Na realidade, segundo o filósofo, os dois elementos não são mutuamente contraditórios, pois toda vez que se tem consciência de alguma coisa, está aberta a possibilidade de não-consciência de aspectos relacionados àquele objeto percebido. Assim, retomando o exemplo da dança cênica contemporânea, em um espetáculo percebe-se algumas coisas enquanto outras deixam de se apreendidas.
Em Fenomenologia da percepção, o autor explica que considera seu próprio corpo como seu ponto de vista sobre o mundo (1971, p.83). Assim, tem consciência de seu corpo através do mundo e tem consciência do mundo devido a seu corpo (1971, p.95). Mas, a forma como se percebe o mundo e seus fenômenos também está vinculada à cultura e à sociedade. Dessa forma, a percepção nunca poderia ser “neutra”, imparcial ou pura. Ela sofre influências, contágios culturais e sociais. Nem a ciência estaria livre para entender o corpo de modo neutro: também ela é passível de interpretação e toda interpretação parte de um repertório de saberes, de conhecimento, de cultura.
O filósofo também entende que o corpo sintetiza a ambigüidade (imanência/transcendência) do ser no mundo. Para Merleau-Ponty, o corpo é forma de expressão, pleno de intencionalidade e poder de significação. Cada movimento, cada gesto produzido é também pleno de sentidos, portanto, “o sentido dos gestos não é dado mas compreendido, quer dizer, retomado por um ato do espectador” (1971, p.195). Assim, o intérprete, em um dado espetáculo, transmite algum sentido através de seus movimentos e o espectador, ora na função de receptor, o entende de determinada forma, segundo seu repertório cultural de informações. Desse modo, “o gesto está diante de mim como uma pergunta, ele me indica alguns pontos sensíveis do mundo, ele me convida a encontrá-lo lá. A comunicação se completa quando minha conduta encontra neste caminho seu próprio caminho. Há confirmação do outro por mim e de mim pelo outro” (id).
Natureza e cultura, assim como sujeito e objeto, não podem ser dicotomizados na visão do filósofo. Esse ponto de vista – que se coaduna com o do sociólogo Marcel Mauss – se reflete em sua visão sobre o corpo. Assim, o corpo não pode ser entendido simplesmente como organismo. Ele também é cultura, transcendendo o aspecto físico: “O uso que um homem fará de seu corpo é transcendente com respeito a este corpo como ser simplesmente biológico”(1971, p.199). Se o corpo não é puramente biológico, os comportamentos dele derivados também não podem ser. Comportamentos, são a um só tempo biológicos e culturais. Os movimentos e os gestos, da mesma forma.
O pensamento de Merleau-Ponty – assim como o de Mauss, que propôs o conceito de fato social total – é importante para evitar o reducionismo na análise de fenômenos relacionados ao corpo, herança do olhar positivista do século XIX. A partir do que escreveu pode-se pensar os movimentos dançados como fruto de experiência vivida, percebida, tanto quanto comportamentos, movimentos e gestos de fora da cena. A platéia percebe o espetáculo, podendo transcender o que é apresentado no palco.
Maurice Merleau-Ponty aprofundou a reflexão iniciada pelo filósofo Baruch Spinoza. Em Fenomenologia da percepção, ao estudar o comportamento, mostrou que existe relação entre psiquismo e fisiologia em toda conduta humana; analisou o corpo no que tange à percepção ilusória, referindo-se ao “membro fantasma” – memória residual do uso das partes do corpo, informações arquivadas pelo cérebro que perduram em um corpo mutilado (caso de pessoas que sentem dores como se ainda tivessem partes já extirpadas de seu corpo).
A psicologia também permitiria compreender esse fenômeno de forma mais complexa. O corpo não seria apenas um objeto físico e sim, “aparência” de uma interioridade. Intrinsecamente ligado a esta interioridade, o corpo se transforma em um instrumento com o qual o homem habita o mundo e a ele pertence.
Do ponto de vista de Merleau-Ponty, consciência e corpo são inseparáveis. Assim, viver seria estar no mundo, refletindo-o e nele se refletindo. A percepção seria a chave para esse entendimento e a construção da realidade. Como a percepção se dá através do corpo, este seria, simultaneamente, sujeito e objeto. O filósofo tenta solucionar tal dualidade através de uma unidade de abstração: o corpo como “coisa pensante” e “objeto pensado” ao mesmo tempo, ou seja, o que pensa e sente e o que se torna objeto de pensamentos. Essa dupla propriedade o coloca na ordem do objeto, de um lado, e na ordem do sujeito, de outro, mas sem dissolvê-lo, sem desagregar as duas propriedades.
Assim, a partir dessas reflexões pode-se entender que a contribuição que o pensamento de Merleau-Ponty traz para o universo da dança cênica contemporânea é, principalmente, a possibilidade de se pensar as artes corporais como espaço de expressão e de construção de pensamento – objeto e sujeito de cultura percebido diferentemente por quem cria, quem executa e quem assiste a um espetáculo. Daí deriva a riqueza tão grande da arte de dançar e criar dança.
Referências bibliográficas:
MAUSS, Marcel. As técnicas corporais. In: (_____). Sociologia e antropologia. São Paulo: Edusp, 1974a. v. II. p. 209-234.
_____. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: (_____). Sociologia e antropologia. São Paulo: Edusp, 1974b. v. II. p. 37-184.
MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. A dúvida de Cézanne. In: Textos selecionados. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Col. Os Pensadores)
_____. Fenomenologia da percepção. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1971.
_____. O primado da percepção e suas conseqüências filosóficas. Campinas: Papirus, 1990.

Um comentário:

  1. Puxa Yiuki, que bom reler esse artigo. Tem tanta coisa maravilhosa nesse blog e que a gente vai aos poucos deixando para trás. É mesmo muito importante retomar. Adorei!!!!! Cintia, vc viu que uma das referências da Denise relaciona o Ponty com o Cázanne? Um dia ainda trabalharemos com ela!

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