Espaço de discussão e reflexão sobre a experiência do olhar e suas reverberações no corpo na construção/remontagem do espetáculo de dança contemporânea "feche os olhos para olhar" da desCompanhia de dança.

domingo, 11 de julho de 2010

Impressões de Christianne Galdino sobre Como risco em papel

Peço licença para Marcela Reichelt e Christianne Galdino para postar essa matéria, mas é isso mesmo, como Christianne mesmo diz a leitura do espetáculo Como risco em papel se acende cada vez mais na nossa sensibilidade e na nossa imaginação.


MARCELA REICHELT E AS ESCRITAS DO CORPO

Christianne Galdino


Como risco em papel / Foto: Tiago Lima

Escuro completo e um aparente vazio. Mas algo está acontecendo no palco. Ela está dançando no escuro mesmo… Ouvimos o movimento, sentimos a dança respirando, antes mesmo de podermos distinguir nitidamente qualquer imagem. Escolhendo essa cena como início, Marcela Reichelt aciona em nós uma outra percepção, como se desejasse inaugurar uma forma diferenciada de nos relacionarmos com a arte, como se quisesse ativar em nós outra visão. A sensação é de estarmos imersos em uma escuridão absoluta, que vai abrindo brechas e revelando fragmentos de um corpo em movimento dançando para si mesmo. Talvez a ambiência criada, e essa postura da intérprete, que parece ignorar a presença do público, emprestem aos momentos iniciais de Como risco em papel características de voyeurismo e um caráter sensual, que se repete em várias cenas. Pelas frestas, enxergamos trechos da escrita corporal de Marcela, e abrem-se imediatamente muitas janelas de leitura. Como um trailer de filme e as orelhas das publicações, a artista apresenta-se em flashes, construindo uma sucessão de imagens marcantes, que transbordam força poética com uma sutileza desconcertante. A trilha sonora, uma criação primorosa de Diogo de Haro, surge com ar de música incidental, ajudando a criar pontes com o filme de Peter Greenaway, O Livro de cabeceira, que inspirou este segundo trabalho da bailarina Marcela Reichelt, agora na missão de intérprete-criadora.

Uma aproximação visível com as artes visuais aparece em todo momento, seja nos desenhos coreográficos majoritariamente imagéticos, seja na presença de certos objetos cênicos e dos vídeos que são exibidos na performance. Porém, as cenas projetadas soam como capítulos à parte, guardam pouca relação com as partituras de movimento apresentadas por Marcela Reichelt, funcionando como complemento, algumas vezes, mas mostrando sempre uma trajetória autônoma. É como se dois espetáculos se intercalassem, e dialogassem em alguns momentos, porém cada um permanecesse no seu lugar. Mas ainda que se perca um pouco do ritmo da cena durante a exibição dos vídeos (principalmente no caso do vídeo que apresenta uma longa performance de rua de um bailarino), a dança escrita por Marcela, as falas do seu corpo se fixam na memória com um poder encantador tamanho que apagam qualquer possível descompasso. É difícil permanecer inerte, alheio diante do encontro com o corpo nu visceral de Marcela transmutado em bicho, em papel, gritando lentamente e em silêncio, a fusão entre corpo e escrita, e as tantas questões aí atravessadas. Mesmo quando a cena final tenta devolver a artista à escuridão absoluta do início, como se tudo e inclusive a identidade e as vivências impressas no corpo pudessem ser apagadas, a imagem daquele banho de noite se agiganta e se acende cada vez mais na nossa sensibilidade e na nossa imaginação. E dali não deve sair por um bom tempo. Delicadeza, mistério, sensualidade, enigma, oriental, ternura, feminino: são alguns termos que poderíamos utilizar se fosse possível traduzir em palavras Como risco em papel

beijos
Cintia Napoli

3 comentários:

  1. Belíssimo, Cintia. O caminho das percepções é mesmo deslumbrante. Provocar o espectador a partir dessas percepções não deixa de ser um descondicionamento do olhar, não é?! Acho que nosso trabalho pode ser cada vez mais "provocante" nesse sentido. Afinal de contas, pontos de vista e perspectivas é que não nos falta. Vamos explorar!!!!!

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  2. Obrigada, Cintia...vamos partilhar sempre nossas impressões e expressões de dança. Marcela Reichelt também agradece o espaço...bjs

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